“Isso aqui é São Paulo, entendeu?”

Helen Araújo
11 min readJun 9, 2020

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O Homem que virou suco

O ator José Dumont com olhos arregalados e fixos assistindo a um vídeo em cena de O Homem que virou suco
Deraldo (José Dumont) assistindo vídeo de treinamento do Metrô de São Paulo, consternado e humilhado.

Texto originalmente apresentado à Prof.ª Dra. Yvone Dias Avelino para disciplina Espaço urbano: história da cidade e suas representações do curso História, Sociedade e Cultura (lato-sensu) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo — PUC-SP. Enxertei comentários pessoais e imagens, pois excedem os limites de uma publicação acadêmica.

A escolha do filme é tanto um prazer pessoal (tanto seu conteúdo como Zé Dumont ser contemporâneo dos meus pais, nascido na cidade vizinha à que mainha nasceu — me pergunto: será que se cruzaram alguma vez na infância?), como uma crítica ao fato de ser comum, tradicional, limitado e até repetitivo estudar a cidade de São Paulo apenas a partir de seus personagens “quatrocentões”, famosos, parte das elites urbana e rural, sendo que grande porcentagem dos moradores da cidade são anônimos e migrantes de vários estados do Brasil e vários países do mundo.

Observem acima o título da disciplina: não define que seja São Paulo, pode ser qualquer cidade; “espaço” urbano: nós, nordestinos, temos nosso (grande) espaço, merecemos que nossa história seja contada; “suas representações”: representamos a cidade; somos Little Tramp (O Vagabundo) de Chaplin, tornando viva e ativa esta máquina capitalista que é São Paulo. Motoristas, garis, faxineiras(os), agentes comunitárias(os) de saúde, domésticas, porteiros, zeladores, seguranças, artistas, professores, médicas(os), acadêmicas(os). Ex-prefeitas.

Como filha de paraibanos, nascida nessa cidade por acaso e pelos mesmos motivos que explicam o enorme fluxo migratório em direção a esta metrópole, me sinto no dever de apresentar, de todas as formas possíveis, o outro lado de São Paulo, lado que enxergo e vivo desde que nasci, lado que me faz concordar com Criolo: não existe amor em SP.

Atenção: contém spoiler. Aconselho que assistam ao filme antes, disponível no YouTube.

Nos últimos anos têm sido publicadas diversas pesquisas acerca do migrante no Brasil, especialmente o nordestino, que tem se mudado para as cidades mais distantes em busca de uma vida “melhor” — maiores salários, oferta de emprego, lazer, estudos e “futuro”, para si ou para seus filhos.

Não é novidade a relação Nordeste-Sudeste na história do Brasil. A partir do fechamento dos portos em 1850, o tráfico interno se deu de Nordeste para Sudeste, onde muitos escravos foram vendidos por senhores de engenho para a nova burguesia cafeeira nos Vale do Paraíba fluminense e paulista, algo lembrado por Thiago Romeu de Souza[1] em sua tese

A presença de “nortistas” já se notava desde o fim do século XIX na produção cafeeira e outras atividades menos “nobres”, mas a presença de migrantes estrangeiros ofuscou este fluxo que passou a ser mais evidente com o declínio da chegada dos italianos e japoneses, a partir dos anos 1930. (p. 139)

Paulo Fontes cita, em sua tese publicada em livro[2], a ocorrência de imigrações em menor escala pós-escravidão até a década de 1930. A partir deste período, o fluxo migratório continuou, com outro formato. Houve incentivo do governo do estado para a entrada de migrantes nordestinos — muitos deles fugindo de grandes secas — , que seriam distribuídos na capital e no interior. Aqueles que chegaram ao interior do estado, foram trabalhar em zona rural, sobretudo na Alta Paulista e Alta Araraquarense. Os que vieram para a capital, conseguiam empregos nas indústrias e construção civil. Com o rápido crescimento populacional — quase um milhão de novos habitantes nos anos 1950[3] — , a massa de trabalhadores acabou sendo distanciada do centro, indo morar em antigas fazendas e chácaras a leste da cidade[4], ou mesmo regiões já povoadas no período colonial, como é o caso da Penha e de São Miguel. Tais regiões foram pouco a pouco ocupadas, loteadas, tornando-se vilas e mais tarde bairros, distritos e subprefeituras a partir do final da década de 1940.

Segundo Fontes, “em 1959, quase 50% de todo o emprego fabril do país estava concentrado no estado”, o que fez com que muitos trabalhadores migrassem para São Paulo, capital e interior, em busca de melhores condições de sustento, carteira assinada e direitos trabalhistas não cumpridos nas zonas rurais do interior de outros estados.

Nessa perspectiva de migração interna que ainda persiste no Brasil, foi escolhida uma obra audiovisual para ilustrar esse personagem histórico presente há gerações na cidade de São Paulo, responsável por boa parte de seu funcionamento, desde o mais básico dos serviços oferecidos, até altos cargos políticos.

Um misto de ficção e documentário, O Homem que virou suco[5] é obra do cineasta mineiro João Batista de Andrade, filmado a partir de um cordel criado pelo mesmo na década de 1970.[6] Filmado ainda no período da ditadura civil-militar, a obra denuncia a opressão vivida pelo migrante na cidade de São Paulo, uma das metrópoles mundiais, muitas vezes dita capital econômica do Brasil.

O filme retrata a situação do migrante nordestino que trabalha em fábricas, construção civil, mansões, obras públicas, e que contribui fortemente para o desenvolvimento da cidade até os dias atuais.

Deraldo da Silva, interpretado por José Dumont[7], é um paraibano residente em uma favela/ocupação na região periférica da cidade. Um poeta cordelista, é criticado pelos vizinhos que consideram sua arte uma brincadeira ou vagabundagem, que pensam que “pegar no batente” é sair cedo para trabalhar e voltar somente à noite, cansado, como comenta sua vizinha. Briga no bar do vizinho Ceará, que lhe cobra o que deve e não admite que Deraldo viva como vive, pois, diferente do artista, conseguiu o que conseguiu trabalhando após ter uma vida sofrida de fome e diversas privações. O discurso de todos ao redor de Deraldo é claramente meritocrático, onde “trabalhar” é se render à brutalidade do capital, e não é considerado o trabalho artístico e ideológico.

Seu Deraldo, vá trabalhar, seu vagabundo! Tá pensando que eu consegui isto tudo com o quê? Foi com o suor do meu ganho. Veja isso aqui, veja tudo isso. Foi trabalhando e muito. Foi muita fome que passei. Foi muita fome e muito trabalho. Não foi com poesia, não senhor.[8]

Deraldo tenta vender seus cordéis no centro de São Paulo, mas a polícia — que representa o Estado — o impede, exigindo documentação para aquela atividade ser autorizada. O curioso nessa cena é que até os hippies possuem documentação para estar ali, mas Deraldo não, pois é caro e burocrático regulamentar sua situação. Sua mercadoria é apreendida na frente do aglomerado de pessoas que ele havia reunido, grupo que só assiste à humilhação que ele sofre por parte dos oficiais, que para “botar banca” desfazem-se do povo do Nordeste, repetindo diversas vezes “aqui é são Paulo” como se essa capital fosse mais civilizada e, portanto, mais organizada que a região de origem de nosso personagem. Humilhado, mas não acovardado, Deraldo não se cala: numa das cenas mais icônicas do filme, ouve “Aqui é São Paulo!”, num sotaque paulistano característico do oficial, e lhe responde à altura: “Grande bosta!”.

Comentário pessoal: cena que me fez querer assistir ao filme. Porque não existe frase que eu concorde mais. Imagem: reprodução.

Ao voltar para casa sem dinheiro e nem mercadoria, ouve de um menino vizinho que a polícia o havia procurado. O motivo? Foi confundido com um sósia que havia esfaqueado o patrão estrangeiro num evento que premiava o operário do ano. Leu a notícia no jornal e reconheceu a semelhança entre os dois. Mas tinham nome e naturalidade distintos: o operário chamava-se José Severino da Silva e era cearense, informações ignoradas pela polícia que desconsidera a diversidade de cada estado e microrregião do Nordeste, e considera todo nordestino “mais um Silva que desceu do norte de pau-de-arara”, destino comum a migrantes nordestinos por boa parte do século XX.

A partir desse ponto, Deraldo foge pela cidade em busca de trabalho e teto, e se depara com diversas situações de opressão e xenofobia. Busca emprego na construção civil, como muitos na cidade de São Paulo, e encontra uma vaga com baixa remuneração, hora extra e abrigo. Ali faz amigos, também migrantes[9]. Lê suas cartas, já que eles não sabem ler. Mas não engole o tratamento dado pelo chefe de obras e se impõe na base da revolta e da palavra cantada.

Tem gente que vem do Norte
e só causa decepção…
Tu és mestre de safadeza
aleijo da criação…
Conheço a tua bravura,
puxa-saco de patrão.[10]

Sem emprego novamente, Deraldo tenta a sorte na casa de uma Madame (sic) amiga de um seu conterrâneo rico; nas obras do metrô, sem sucesso e com muita humilhação por parte da elite, do empresariado e do Estado. No caso do Metrô de São Paulo, a humilhação se dá institucionalmente: é obrigado a assistir a um vídeo que mostra uma visão caricata e preconceituosa do trabalhador que migra do Nordeste, vestido de cangaceiro e tido como violento e indomável.[11] O estopim acontece quando encontra uma barata no almoço[12].

O ator José Dumont vestido de cangaceiro apoiado em poste, entre trabalhadores no centro da cidade de São Paulo.
Cena em que Deraldo (José Dumont) aparece vestido como cangaceiro, aludindo a vídeo preconceituoso apresentado no treinamento de trabalhadores do Metrô de São Paulo.

Depois de ter tentado tudo o que lhe foi possível, Deraldo passa mal no meio da rua e é levado para um centro de cuidados a pessoas em situação de risco e extrema pobreza. Ali aparece a Condessa caridosa, mantenedora do lugar e que se exibe na frente das câmeras, abraçando os enfermos e apresentando suas doações para as classes mais pobres, uma atitude impositiva diante de quem necessita de justiça social e não apenas a bondade duvidosa de quem tem posses.

Saindo do local, Deraldo se envolve romanticamente com a vizinha, que lhe devolve os cordéis apreendidos pela polícia. Na cena seguinte, ele vai a uma editora e combina a produção de um cordel contando a história de Severino. Ali é acolhido, festeja em forró com conterrâneos e/ou migrantes como ele. Dominguinhos e Vital Farias estão presentes no forró. Após a festa, se mostra a busca de Deraldo por Severino entre seus companheiros de fábrica, que lhe contam onde mora e o que houve em sua vida de operário.

Deraldo, por fim, encontra a família de Severino, seu sósia. Nordestino como ele, mas não paraibano e sim cearense, Severino foi seduzido pelos patrões a furar uma greve e denunciar seus colegas operários de fábrica. Aí o filme mostra uma outra possibilidade de reação do migrante na cidade grande: de obedecer aos patrões, em busca de receber melhor tratamento e salário para sustentar sua família. Mas não é isso que acontece: o reconhecimento chega — Severino ganhou prêmio de funcionário do ano — , mas somente após sua demissão. Por vingança, portanto, esfaqueia o patrão e some na primeira cena do filme, reaparecendo no fim, com perturbações mentais, sendo levado pela ambulância.

Provando sua inocência em um novo cordel que conta a história d’O Homem que virou suco, Deraldo o vende por dez cruzeiros no mesmo local no centro da cidade em que foi barrado no início do filme. Mas agora tem documentação e alvará para venda, tendo um final esperançoso de futuro sucesso com sua própria forma de viver e de criar.

Esse personagem, o duplo[13] Severino/Deraldo, representa nas telas o sujeito-histórico tão presente quanto negligenciado na construção e na escrita da história da cidade de São Paulo. Severino e Deraldo somos todos nós, nordestinos e filhos de nordestinos, que ora tentam vender seu corpo, sem corromper a alma e seus princípios, ora, por medo de perder o corpo, vendem logo sua alma para se sentirem acolhidos.[14]

II

Pra que serve a cidade
Pra viver no corre-corre
E depois que a gente morre
Se acaba toda a vaidade
Pra que a necessidade
Pra se mendigar o pão
Pra que serve o patrão
Pra dar parte ao delegado
Isso é que é mourão voltado
Isso é que é voltar mourão

III

Pra que serve o operário
Pra construir edifício
Pra que tenha sacrifício
Pra ganhar pouco salário
Mas quem faz esse inventário
Só pode ser o patrão
E quem ganha com a produção
O fato está consumado
Isso é que é mourão voltado
Isso é que é voltar mourão[15]

Referências bibliográficas

ANDRADE, João Batista de. O Homem que virou suco: de João Batista de Andrade. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cultura — Fundação Padre Anchieta, 2005. Disponível em https://aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.813.094/12.0.813.094.pdf. Acesso em: 28 abr. 2020.

FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945–1966). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.

O HOMEM Que Virou Suco (1981) (95 min). Publicado pelo canal Caio Nunes da Cruz. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FF70tq8QSS4. Acesso em: 13 jan. 2020.

O HOMEM que virou suco | Pontos MIS — Bate-papo de cinema (129 min). Publicado pelo canal Museu da Imagem e do Som de São Paulo — MIS. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zz998JCQe98. Acesso em: 30 mai. 2020.

SOUZA, Thiago Romeu de. Lugar de origem, lugar de retorno: a construção dos territórios dos migrantes na Paraíba e São Paulo. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2015.

Notas

[1] SOUZA, Thiago Romeu de. Lugar de origem, lugar de retorno: a construção dos territórios dos migrantes na Paraíba e São Paulo. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, 2015.

[2] FONTES, Paulo. Um Nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em São Miguel Paulista (1945–1966). Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.

[3] Idem, p. 46.

[4] Ainda hoje é possível ouvir, em conversas, moradores antigos de São Paulo e ABC chamando o centro de “cidade”, como se a região mais afastada não o fosse. Isso se deve ao processo de urbanização de zonas rurais mais afastadas.

[5] O HOMEM Que Virou Suco (1981) (95 min). Publicado pelo canal Caio Nunes da Cruz. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FF70tq8QSS4. Acesso em: 13 jan. 2020.

[6] É possível conferir o cordel, não lançado separadamente do filme, em publicação da Imprensa oficial. Ver nota número 8.

[7] Paraibano da cidade de Bananeiras, agreste do estado, José Dumont Vasconcelos nasceu em 01 de julho de 1950.

[8] ANDRADE, João Batista de. IV. O Roteiro. In: O Homem que virou suco: de João Batista de Andrade. p. 64.

[9] Boa parte dos personagens dessa cena eram de fato operários e não atores. Isso se repete em cenas do metrô e do desmaio de Deraldo.

[10] ANDRADE, João Batista de. IV. O Roteiro. In: O Homem que virou suco: de João Batista de Andrade. p. 89.

[11] Quando a arte imita a vida: em bate-papo recente com a equipe do MIS-SP, João Batista de Andrade diz ter o vídeo original do Metrô ensinando como ser um “bom trabalhador” por meio de caricaturas preconceituosas. Não foi invenção do filme: a animação foi criada com base num documento audiovisual real, proibido de ser reproduzido.

O HOMEM que virou suco | Pontos MIS — Bate-papo de cinema (129 min). Publicado pelo canal Museu da Imagem e do Som de São Paulo — MIS. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zz998JCQe98. Acesso em: 30 mai. 2020.

[12] A cena de insurreição dos funcionários do Metrô é novamente apontada no roteiro pela equipe como parte real da história, não são atores contratados nem foram ensaiados para se revoltar.

[13] O termo “duplo”, que apresenta um personagem só em duas personas com duas possibilidades de futuro a partir de suas escolhas, é posto pelo próprio autor da obra, no já referenciado bate-papo com o Museu da Imagem e do Som — MIS SP.

[14] A ideia de venda de corpo/alma é posta pelo autor, João Batista de Andrade, no mesmo bate papo referido acima.

[15] ANDRADE, João Batista de. V. As Músicas de Vital Farias. In: O Homem que virou suco: de João Batista de Andrade. p. 146–148.

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