La Bestia Negra indomable
um conto circense latino do século XX
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Juan era assistente de domador de circo já há alguns anos, e viajava pelas cidades do interior da América Central com a companhia desde que nasceu. Órfão, aprendera o ofício com Don Gusmán, famoso e inesquecível domador de leões, tigres e jaguares.
Gusmán Garrido era um homem alto, forte, de risada grossa e alta. Cultivava bigodes que faziam todas as moças e senhoras suspirarem. Seu coração, no entanto, batera apenas por uma delas: Marieta. Filha de fazendeiro rico dono de uma das ilhas, Marieta Montenegro foi obrigada a casar cedo com o industrial Jesus Maldonado, depois de ter sido capturada de uma fuga pelos capangas de seu pai, nos anos 40. Fugia para os braços de Gusmán.
Depois do casamento, Marieta contraiu sífilis do marido, e morreu antes de poder dar-lhe filhos. Com ela morreu também o coração de Gusmán.
Juan admirava Don Gusmán. Como se fosse ele mesmo seu pai. Mas Gusmán, amargurado, depois de Marieta não foi o mesmo homem. Era rude como uma fera, e tinha apenas elas, as feras, como amigas. Compreendia seus rugidos, queria tê-los. Dava patadas como o tigre Ignacio, então poucos dos artistas circenses conseguiam chegar perto. Juan era um deles, assim como a cartomante Maria, amante e companheira — por conveniência — de Gusmán.
O famoso domador cuidou do menino desde a morte do pai deste, que sofrera um acidente no globo da morte. Julio era seu melhor amigo e haviam lutado juntos na guerra em Espanha. Juan era eternamente grato a Gusmán, e tentava aprender tudo o que ele lhe ensinava. Absorvia também por observação. Imitava o velho domador.
Um dia, viu Gusmán gargalhar, feliz da vida, com uma novidade que vinha da América do Sul. Nunca havia enxergado tanta luz nos olhos daquele velho triste.
— Que felicidade é essa, Don Gusmán?
— Marieta!
— Como? — engoliu seco, sabendo que proferir esse nome era proibido.
— Marieta! Vai se chamar Marieta!
— Quem?
— Venha filho, olhe que beleza. Ramírez voltou de sua viagem ao Sul e trouxe mais uma fera para o nosso espetáculo. Esses olhos, esse sorriso, essas presas… Só pode ser Marieta!
Juan olhou para onde Gusmán apontava. Dentro da jaula de ferro, rugindo incansavelmente, uma negra fera de olhos amarelos. A onça se debatia, enquanto vários homens rodeavam a jaula, admirados. Palhaços, mágicos, cuspidores de fogo, ciganos. Gusmán e Juan. Todos apaixonados por aquela jovem pantera selvagem, de corpo forte e andar gingado, pesada na raiva e leve no andar. Parecia andar em nuvens, seus músculos reluziam à luz do luar. Juan podia ver o reflexo do bicho cintilar no olhar de Gusmán, o felino o desafiava.
— Estou pronto, Don Gusmán. Quero domá-la.
— Ah! Ha ha ha! Garoto, não me faça rir! Fique com Ignacio, ele está velho e cansado, mas ainda é fera. Ele combina mais com seu tamanho, idade e experiência.
— Mas, Don Gusmán! Eu consigo. Eu sei que consigo.
— Nada de “mas”, Juan. É perigoso. Você é um menino ainda. Sei que quer me impressionar, sei que sempre anda comigo, quer aprender. Você é um bom garoto, mas verde ainda. Muito novo.
Juan sentiu raiva. Tinha que provar a Don Gusmán que era tão homem quanto ele. Era forte. Filho de Julio Gutierrez, o grande piloto que causara o sucesso daquela Companhia, falado por toda a América Latina. Aquela pantera, aquele grande gato negro, iria provar de sua força, de sua esperteza, de sua inteligência. Seria domada por ele e ele seria o orgulho de Julio, de Gusmán. Era tão homem quanto os dois!
Com raiva e calado, Juan saiu de perto das jaulas. Quando sentia raiva, tudo o que queria era rugir, como aqueles animais. Mas seu corpo, sem obedecer a suas vontades, só conseguia expelir lágrimas, involuntariamente.
“Homem não chora”, repetia consigo. “Homem doma feras, homem acelera motocicletas. Homem sobrevive aos maiores perigos. Homens são fortes. E eu já sou homem.”
Sabendo que não conseguiria mudar a opinião do velho, Juan utilizou a melhor arma que tinha: ia domar a fera em segredo. Fingiu ter obedecido e até fingiu ter esquecido Marieta. Ajudou Gusmán com Ignacio, ajudava a alimentar os enormes gatos atrás da tenda em que dormiam. Para se mostrar solícito, ele mesmo se oferecia.
— Ah, garoto. Estou ficando velho, cansado. Veja só você que me esqueci de alimentar Marieta hoje. É dia de pagamento e ajudei Ramírez a separar os salários de todo o circo. Bebemos para descansar, e acho que esse velho fígado aqui já não funciona como antes. Cinco tequilas e já fui ficando sonolento, dei um cochilo que só me pesou mais o corpo. Tome aqui sua parte. Pode tirar um dia de folga e arranjar uma mocinha para assistir ao espetáculo. Eu vou alimentar Marieta antes que adormeça aqui mesmo, sentado.
— Don Gusmán… Se o senhor quiser eu alimento. Já estou acostumado, não faz mal. Vá descansar que amanhã tem espetáculo.
— Certeza, garoto? Olha lá…
— Sim, certeza. Jogo a carne de longe. O rabugento do Ignacio nunca me fez mal, e é muito maior que Marieta.
Gusmán cerrou os olhos por um instante, mas decidiu dar crédito ao garoto. Queria ser homem, ha ha. Alimentar a fera poderia ser um bom exercício, além do mais ele era sempre prestativo e fazia tudo direitinho, nunca lhe dera dor de cabeça.
— Tudo bem. Só dois pedaços. Ela é pequena, não está acostumada a comer assim; a carne é fresca, mas menos fresca que uma presa viva. Por isso mesmo ela pode ser mais violenta que Ignacio, mesmo que menor e mais jovem. Cuidado.
— Pode deixar, Don Gusmán!
Juan pegou o balde com a quantidade de carne sugerida, e foi para os fundos da tenda. Marieta descansava na escuridão da noite. Só se viam seus olhos, que abriam preguiçosamente, vez em quando. Juan chegava perto. Calado. Devagar. De repente, parou. Se assustou com o bocejo do bicho, que voltou a dormir.
Era linda… Tão brava, e ao mesmo tempo tão doce. Inteligente, estava há dias sendo tratada por Don Gusmán e continuava selvagem, teimosa. Não obedecia, não tinha o mesmo ritmo nem a mesma rotina dos outros felinos. Brigava com eles também. Seu instinto não a deixava confiar nem em homens, nem nos outros gatos. Não era, não queria ser obediente. Queria voltar para casa. Caçar. Dormir com as patas penduradas num galho de árvore. Brincar com as outras onças e ronronar mordiscando seus pescoços, de leve. Essas lembranças boas fizeram-na ronronar alto, dormindo. E isso seduziu mais ainda Juan. “Como uma fera pode ser tão bela? Tão graciosa? Queria eu ser fera também”, pensava o garoto, chegando mais perto.
— Psss psss, Marieta… Chegou seu jantar.
A pantera acordava de seu sono devagar, de maneira quase lasciva. Resmungou ao ver Juan, do outro lado das grades, com metade do rosto iluminado pela lua. Os olhos de ambos brilhavam, seus olhares se encontravam. Rugiu baixo.
— Isso, boa garota. É só comida no balde, viu? Comigo você não passa fome, eu vou cuidar de você.
As palavras não tinham significado para Marieta, mas o tom em que eram pronunciadas fizeram-na acreditar no garoto. Com seu pensamento de bicho — porque ninguém garante que bicho não pensa — , a grande gata preta secretamente sabia que como presa o garoto não servia. Era magro demais. Guardou esse segredo para si, e fingiu raiva só para não perder a pose de selvagem. Miou alto e grosso, só para assustar, mas sem demonstrar real perigo. Juan sentiu seus sustos, e a cada susto sorria mais em direção ao bicho. Deu o jantar da gata, fez sinal com a mão, para mostrar que era inofensivo, sem artimanhas.
Esse envolvimento foi se dando aos poucos, na calada da noite, pelas costas de Don Gusmán. De dia, o velho tentava criar planos para amansar a fera, sem sucesso. À noite, o bicho já esperava por Juan e seu balde de zinco. Às vezes até sem fome, esperava curiosa pela novidade. “O que é que ele vai fazer hoje?” — pensava enquanto lambia as patas e mordiscava por entre as garras. Quando se dava conta, soltava um rugido alto, brava consigo mesma, para não se deixar enganar.
Cada dia Juan inventava algo novo. Não batia de frente com a pantera. Tentava atiçar o que ela tinha em si, criava brinquedos, até contava histórias. E o bicho, curioso à sua maneira, ia se soltando cada dia mais. Se deixava ronronar, fingia que não sentia os afagos no cangote liso. Roçava na grade, cruzava olhares. Tinha sua companhia noturna naquele mundo estranho de seu exílio. Tinha alguém em quem confiar — será que podia? — naquela prisão.
Juan se envolvia na brincadeira. A vida tinha graça, ficava maquinando novidades para entreter a fera. Ia domá-la sem usar um pingo de força, ia ser gentil, educado. E seu método faria sucesso, surpreendendo até mesmo El Gran Gusmán Garrido. Sua ambição era grande.
Marieta, quando o via, ficava alerta. Esperava o próximo passo. Com o tempo, Juan aparecia por trás de Gusmán de dia, enquanto o velho tentava domar a onça com seu método habitual. Para Gusmán, Marieta continuava a bela e temível fera que era. Quando Juan acenava para ela, em segredo, ela obedecia, fazendo com que o velho pulasse de alegria, achando que era mérito próprio. E esse jogo ficou sendo segredo dos dois. Gusmán não entendia nada, e achava que o bicho estava enlouquecendo. De arisca a dengosa, a fera o ludibriava. Juan ria, e sabia que, se pudesse, Marieta estaria rindo também.
Semanas foram passando, e Gusmán acreditando cada vez mais no seu poder sobre Marieta. A gata já deixava Juan fazer um caminho de carinho pela coluna toda, deitava de barriga pra cima, mordiscava o braço dele, de leve. O garoto sentia imenso poder, alegria. Achava que poderia ser amigo da onça para sempre; sonhava à noite com espetáculos, propagandas, folhetos, pôsteres, jornalistas e donzelas. “RrrespeiTÁvel público! Agora! Com vocês… El Gran, El Hermoso, El Peligroso… Juan Gutierrez!” — narrava para si mesmo, e conseguia inclusive imaginar o ovacionar do público, o cheiro da pipoca, o fascínio no olhar de crianças pequenas e moças solteiras. “El Unico, El Valiente domador de Marieta, La Pantera de America del Sur, La Bestia Negra!” — continuava o apresentador. Em seu sonho, Juan fazia todos os malabarismos e gestos possíveis, os mais arriscados, levando a platéia à loucura. E Marieta sempre ali, brava, mas limitada. Feroz, mas controlada. Perigosa, mas domada. E o invencível, o destemido Juan Gutierrez, dormia seu sono pesado até o dia seguinte.
Na primavera, chegaram a uma nova cidade. Era tempo de testar as habilidades de Marieta, e todos estavam animados e apreensivos. Chegando o dia de estréia, Gusmán não conseguiu se levantar. Tentou, teimoso, rugindo que era dia de apresentação. Maria e Juan teimavam de volta, mandando-o se deitar.
— Esqueça, homem. Nós adiamos. O público vai entender. Você não está em condições… — suplicava Maria.
— Eu posso te substituir — soltou Juan, exasperado. Era agora ou nunca.
— Garoto, eu já ri da suas brincadeiras, não tem mais graça! Já disse que não está pronto!
— Don Gusmán! Alimento Marieta todas as noites, eu sei como ela age. Vejo vocês de manhã e à tarde, passo o dia com aquela pantera! Sabe aquele movimento que ela faz com o focinho, que seu Ramírez morre de rir? Fui eu quem ensinou!
— Deixe de conversa, garoto. Não existe isso. Você está certa, Maria, adiamos.
— Mas Don Gusmán!
— Nada de “mas”! Já falei! Você fica aqui comigo e me faz um xarope. Vá, Maria, suas clientes não gostam de esperar. Daqui a pouco entram aqui, alvoroçadas. Vá ler teus futuros, mulher. O garoto me acompanha.
Maria obedeceu, pesarosa. Antes de sair, beijou a testa do rapaz e pediu cuidado. Anotou a receita do xarope rapidamente e partiu.
O circo estava cheio. Os palhaços faziam brotar tantas altas gargalhadas, que Juan, do outro lado do terreno, sabia o que estava sendo apresentado. Deu o xarope ao domador e esperou que ele dormisse: por sorte Gusmán não aguentou, de cansaço. “Bem na hora”, pensou Juan, esperançoso. Correu para o picadeiro, bem no momento que iam cancelar a apresentação. Matias mal começou a comentar a doença de Gusmán, e Juan se apresentou como domador substituto. Maria não estava por perto para desmenti-lo, então os olhares desconfiados duraram pouco tempo.
Prepararam tudo. Marieta foi acompanhada por Juan, e acreditava, na sua bestialidade, que ele a estava ajudando a fugir. Por isso, ficou um pouco agitada, sem saber se ronronava, se deitava, se rugia. Ia sentir o cheiro do mato novamente. Quem sabe Juan pudesse ir com ela e ajudá-la com a caça, vez em quando? Brincar com as outras feras. Era bicho diferente, franzino, torto, pálido, mas ela também era diferente. As outras onças eram pintadas, douradas, pardas. Ela, da cor da noite. Juan deveria ser uma onça à parte, como ela. Ou mesmo deficiente, não importava. Foi seu amigo, a alimentou. Mostrou coisas novas. Seria bem vindo à sua casa. Quem se metesse com ele levaria uma mordida mais forte na orelha e estava tudo certo.
Mas os planos de Juan eram outros. Estava ofuscado pelo brilho da possível fama. Tinha tudo premeditado. Ensaiara tantas vezes… Seriam amigos para sempre, amigos de picadeiro. Ele, El Gran Domador. Ela, La Bestia Negra.
A gaiola foi posta no meio do picadeiro, e o susto do público assustou Marieta, que deu alguns rugidos, sem entender aonde estava. Juan pôs-se em seu lugar, com sua roupa e suas ferramentas. Pigarreou. Viu a agitação de Marieta, e fez sinal aos ajudantes que esperassem. Foi até ela, com a mão em sinal que o mostrava inofensivo.
— Heey. Como você está? Como anda esse universo? — falou, numa voz macia, quase sebosa, forçosamente doce, que não enganou Marieta. Pesou a mão na gentileza, rasgando o véu da falsa simpatia que cultivara por todo esse tempo. E pesou a mão pelo nervosismo na boca do estômago, emaranhado com o desejo de poder e glória que estavam ali, minutos à sua frente. Era um ambicioso.
A gata selvagem, estranhando todo aquele espetáculo, ouvindo todos os diversos ruídos da platéia, se agoniou. As luzes amarelas, os cheiros acre e doce, os choros de criança, os gritos dos homens ansiosos, tudo isso fez sua cabeça girar. A gaiola foi aberta. Juan já estava novamente a postos. Marieta parou na borda, olhou para os lados. Caminhou, trêmula, rugindo baixo, como quem perguntasse “O que você está fazendo?” — e se perguntava de modo que se feria, não podia acreditar no engano que se deixou viver. Juan só queria dela o mesmo que todos os outros. Uma gata obediente, que se deixa levar, que segue suas regras, para fazer sua fama. Para estampar os pôsteres da cidade, de se mostrar aos amigos e se estufar o peito. Marieta era o novo Ignacio. Iam aposentar o tigre. Não que ela pensasse isso, mas sentia essa coisa estranha que observava nos humanos e nos outros bichos. Esse modo de vida esquisito, não natural, gradeado, triste. Ela era bicho libre, completa, inteira, infinita… Bicho do mato, da natureza, das noites estreladas… E pensar que quis esse universo inteiro para ela e para Juan. Aquele bicho estranho, pior do que picada de cobra.
Nesse tremer das patas, ainda leves, ainda desfiladas, Marieta levantou o olhar. E o que se viu foi ódio. Puro, negro, aveludado, tal qual seus pelos. Tal qual uma noite de lua negra. Matéria escura, vácuo. Buraco negro. Maldade sem fim. Sentiu-se agraciada, acolhida pela Grande Mãe. Sentiu o manto de veludo da noite aquecer e dar força a seus músculos torneados, aparentes em cada passo.
Juan sorria, empertigado. Uma bailarina, flerte seu, fazia graça no picadeiro, atrás de si. Se entreolhavam sorrindo, era seu dia de glória. Queria poder ver Don Gusmán sentado, orgulhoso. Queria poder mostrar a ele toda a sua graça. Queria vivo El Gran Julio Gutierrez, com seu olhar selvagem e orgulhoso. Mas todos iam ver. Os jornais iriam noticiar. Se tornaria lenda. Domaria os filhotes de Marieta, assim como ela. Seriam juntos invencíveis!
Esses sorrisos, esses olhares, esse tom e essa pose só deram mais gasolina ao incêndio que era Marieta. Que caminhou, lentamente, sedutora e centro das atenções. Até o momento certo e preciso…
Juan sorria… E seu riso triunfante se desvanecia a cada passo da gata. Algo ali estava errado. O olhar era diferente. Indeciso, abriu os braços para um abraço, tentando mostrar que não a machucaria. Querendo saber se estava tudo bem entre eles, abriu os braços e olhou, cabisbaixo, com cara de “posso?”, e o que viu foi algo completamente inesperado.
… Até o momento certo e preciso em que meteu a pata direita no peito de Juan, com força moderada, pois não queria matar. Juan não era presa. Juan era inimigo. O rapaz cambaleou para trás. A bailarina o protegeu da queda direta na terra respingada de sangue. Marieta rugiu. Primeiro para Juan, olhando bem no fundo das humanas pupilas ardilosas e assustadas, com seus olhos amarelos de gata. Amarelos de puro rancor. Depois, rugiu para toda a plateia, alto, vaidosa, pra mostrar quem era o verdadeiro domador. Não havia homem que a peitasse. Não conseguiram colocá-la de volta na gaiola. Não tinha quem pudesse com Marieta. A gata correu desembestada em busca de saída, rugindo para quem chegasse perto. Por sorte, não havia ninguém armado naquela noite, não acharam que Gusmán se apresentasse, então parecia não ser necessário. Era noite de Lua Negra, e nessa escuridão La Bestia Negra se camuflou sob a noite e sumiu, livre, na floresta.
Juan, como tanto sonhara, teve os olhos voltados para si no grande picadeiro. Mas não como queria. Estavam todos preocupados com o rapaz, ferido no peito, com marcas semi-profundas de gata selvagem — não suficientes para matar, mas no ponto para deixarem cicatrizes que, mesmo ele escondendo debaixo da camisa, teria que lidar todas as vezes que se despisse, para banhos ou mulheres. Pensava que fora traído por Marieta. Culpava-a. Mas escondia sua maldade de si mesmo, então também mentia “Não, ela está certa em agir assim. A culpa foi minha. E da situação. Se eu tivesse agido de outra maneira…”
O evento saiu nos jornais. Gusmán se sentiu culpado, traído… Maria o consolava. Juan não tinha cara para entrar na tenda. Arruinara a fama que o pai conquistara. O circo agora passava por inspeções da polícia, eram cobradas taxas que seu Ramírez não sabia como pagar, pois os espetáculos estavam adiados até a regulamentação da segurança do local. Os bichos davam medo nos cidadãos, as curiosas perderam a coragem de lidar com o futuro, com medo de saírem da tenda de Maria e serem comidas por um tigre perambulando por aí. A ruína! Um efeito dominó.
Juan foi embora. Comenta-se que arranjou emprego de funcionário público e se casou com uma moça donzela. A esposa fazia pose diante das outras senhoras na cidade, se fazia de valente. Dizia que o marido era domador, na juventude. Quando perguntavam o que aconteceu, mudava de assunto e fazia careta para mostrar um comigo-ninguém-pode, não-interessa-o-que-aconteceu. Temerosas, as virgenzinhas calavam e bajulavam a Senhora Gutierrez. Mas essa, Juan domou até que rápido. Não era desafio páreo para as feras de Don Gusmán, que morreu de desgosto, sem circo, sem força, sem glória, sem Marieta…
Os dias de Juan eram um após o outro mais desbotados, amarronzados, cor de uniforme, marmita, rotina e trabalho. Datilografava registros e gelava a espinha quando o nome da cidadã era o mesmo da fera… Nessas horas punha a mão no peito, sentia os relevos que ela deixara. Quase sorria… Num desses devaneios, muitos anos depois do ocorrido, levantou para tomar um ar na calçada. O rádio chiava notícias ao longe, sobre um bicho não identificado nas redondezas. O radialista alertava para os cidadãos ficarem em casa. “Por isso a rua está tão mais vazia que o normal”, pensava ele, quando olhou para o horizonte e a viu. Negra, com alguns pelos brancos, mas ainda assim inteira e formosa. Era Marieta! A gata lhe mediu de cima a baixo e viu que aquele rapaz que conheceu e acreditou ser amiga, tão sonhador e ambicioso, esperto e ardiloso, era hoje uma coisa bege, macilenta, cansada, curvada. Quase sentiu pena. Mas bicho não sente essas coisas.